Do livro o “Grande Salto Atrás”
De Henri Alleg
“ Aqueles que
tão alegremente aplaudiram a morte da URRS e que tão perentoriamente proclamaram definitivamente virada a página do comunismo e das suas «utopias»
não conseguiram, até hoje, descobrir nenhuma explicação para o fulgurante
reaparecimento do pavoroso «espectro» de que julgavam libertos para sempre. A
vitória dos comunistas nas eleições legislativas russas de Dezembro de 1996
deixou-os completamente perplexos; apenas conseguiram aperceber-se de que
aquilo que haviam «enterrado» continuava, apesar de tudo, bem vivo.
Cerca de seis
meses depois, a vitória de Iéltsin nas eleições presidenciais não chegou para
dissipar-lhes a inquietação, pois sabiam quão frágil ela fora — e não somente
por causa da saúde, mais que precária, do Presidente. Sabiam, também, que a
maioria dos eleitores que na segunda volta se haviam finalmente decidido por
ele não o tinham feito em sinal de aprovação pelo modo como governara durante o
primeiro mandato e que muito menor era, ainda, o número dos que nele confiavam
para o futuro. Quatro meses antes do escrutínio, as sondagens efectuadas por
grupos de especialistas norte-americanos ([1])
atribuíram-lhe apenas 6% de votos favoráveis. A percentagem dos Russos que o
achavam dotado «das competências exigidas para ser um bom presidente» era ainda
menor. 60% dos Russos davam-no como corrupto e 65% responsabilizavam-no
directamente pela derrocada da economia do país.
Mas era
Iéltsin que servia ao Ocidente, pois, com ele, se tinha a certeza de a Rússia
se manter no «bom caminho» e não sentir a tentação de voltar, depois de uma
breve experiência capitalista, aos antigos espíritos malignos do colectivismo.
«Iéltsin é o nosso homem, quanto mais não seja porque todas as outras soluções são
muito piores» ([2]) —
escrevia um dos editorialistas da revista Time
logo a seguir ao escrutínio ([3])
«Se os dirigentes ocidentais pudessem votar nas eleições russas — acrescentava
— , Iéltsin teria obtido, decerto, um resultado muito melhor que os 99,8% de
Saddam Hussein.»
A aposta era
demasiado forte para apenas lhe fossem dados estímulos verbais e calorosos
desejos de vitória. «O Ocidente desembolsou milhares de milhões ([4])
para garantir a vitória de Iéltsin — escrevia, ainda, o mesmo editorialista —
Os estadistas ocidentais convidaram-no a participar nas suas mais íntimas
reuniões, adularam-no, amimaram-no, acarinharam-no…»
Bill Clinton,
o cabecilha do «mundo livre», fez ainda melhor: prestou-lhe auxílio prático
directo, mas — como revela a Time— no
mais absoluto segredo, não fosse o candidato comunista ganhar alguma coisa com
isso ao denunciar a ingerência norte-americana nos assuntos internos da Rússia
e o papel de fantoche que Iéltsin se aprestava a desempenhar.
Em princípios
de Março de 1996, chegaram tranquilamente a Moscovo cinco pacíficos cidadãos
norte-americanos — que se faziam passar por homens de negócios — a fim de dar a
sua ajuda na orientação da campanha eleitoral de Iéltsin. Por um «trabalho» de
quatro meses, cada um deles receberia — além do reembolso de todas as suas
despesas pessoais— a quantia de 250 mil dólares. Além disso, fora-lhes aberta
uma linha de crédito ilimitado para a realização de todas as investigações,
inquéritos e sondagens que julgassem necessárias.
Quatro desses
homens eram especialistas em eleições, batidíssimos nos mais requintados
métodos — e também nos «golpes baixos» — utilizados nos Estados Unidos para
«vender» um candidato e conseguir a sua eleição à custa da esmagadora ocupação
publicitária dos televisores, de minuciosos estudos da psicologia dos
telespectadores (montando-lhes nos receptores dispositivos especiais destinados
a «medir» a intensidade das suas reacções e a sua receptividade aos argumentos
dos candidatos) e ainda, muito classicamente, de «luvas», ameaças e calúnias e
de manifestos e declarações especialmente forjados e atribuídos ao adversário a
fim de desacreditá-lo ([5])…
…Com a
colaboração da filha de Bóris Iéltsin, Tatiana Diachenko, incumbida de manter
uma constante ligação com o seu pai, esses norte-americanos definiram
rapidamente a táctica que, segundo explicaram, seria a única capaz de garantir
a vitória. As suas observações foram resumidas num memorando de dez páginas:
«Os eleitores não aprovam a maneira com Iéltsin conduz os assuntos do Estado; não
acham que, desse modo, as coisas possam melhorar e preferem a maneira de ver
dos comunistas. Só há uma estratégia para ganhar, e é muito simples: em
primeiro lugar, é preciso mostrar às pessoas que os comunistas têm de ser
vencidos custe o que custar.»
«A dificuldade
— explicaram depois esses mesmos agentes — é que Iéltsin não conseguia
compreender que os Russos não queriam aceitá-lo.» Para ganhar— e para se não
ver obrigado a anular as eleições por ser perigoso realizá-las ([6])
— , Iéltsin teria de convencê-los de que, apesar da repulsa que sentiam em
votar nele, não podiam agir de outro modo. Isso exigia jogar com o medo: «Se os
comunistas ganhassem, haveria guerra civil, desordem e matanças. Seria tudo
muito mais terrível que a vida actual. Ou Iéltsin ou o caos e a sangueira.
“Esta argumentação foi martelada e remartelada nas televisões e nas rádios,
monopolizadas por Iéltsin (depois da primeira volta, Ziuganov foi praticamente
impedido de ter-lhes acesso).
Milhões de
eleitores, que o Presidente cessante convidava a votar nele, não tinham
recebido os salários que o Estado estava a dever-lhes havia muitos meses. A
brigada de «consultores» chegou à conclusão que Iéltsin devia absolutamente
deixar de proclamar que lhes seriam pagos imediatamente a seguir à sua eleição,
pois ninguém acreditava já nas promessas, que se viravam contra ele. Era
preciso começar a pagar sem mais demora. Os milhares de milhões do FMI e das
«democracias amigas» — aos quais se juntaram as reservas do Banco Central,
ilegalmente confiscadas por Iéltsin — serviram, em parte, para isso. Os
norte-americanos aconselharam-no, também, a atirar publicamente as culpas dessa
falta de pagamento para os altos funcionários — que não teriam cumprido as suas
ordens embora ele. Iéltsin, já de há muito lhes houvesse transmitido directivas
no sentido de que todos recebessem o que lhes era devido.
O fortíssimo apoio do Ocidente, as mentiras, a
demagogia, o cultivo do medo e as calúnias anticomunistas, juntamente com o
dinheiro distribuído às pazadas e com aas promessas de promoção feitas a certos
candidatos, postos de fora de combate na primeira volta — como o general Aleksandr Lébed’ — , para que
desse apoio ao «bom» candidato, foram os ingredientes que, reunidos, acabaram
por dar a vitória a Iéltsin. «Temos, enfim, a “democracia” na Rússia!» —
exclamariam, sem rir, Bill Clinton, Jaques Chirac (que felicitou pessoalmente o
seu «caro Bóris Nikoláevitch»), Helmut Kohl, John Major — e também outros
políticos, com reputação de «esquerda», que preferiríamos não ver em semelhante
companhia.
Iéltsin obteve
40 milhões de votos, ou seja: 53% do total dos votos expressos. Ziuganov obteve
30 milhões, numa percentagem de 40,3% ([7]).
Para os falsos democratas, os autênticos mafiosos, os verdadeiros novos -ricos,
os reformadores de meia-tijela, os autênticos mafiosos e os pretensos amigos
que, no estrangeiro, tinham financiado a campanha, foi uma vitória. Mas, para
os observadores das capitais ocidentais capazes de ir um pouco mais além na
análise, o resultado do candidato vencido significava tanto, ou mesmo mais, que
o do vencedor e mostrva que, no fundo, as eleições nada tinham resolvido.
Apesar da
extraordinária mobilização dos meios contra eles reunidos, os comunistas tinham
reconstruído, ao cabo de menos de cinco anos sobre a dissolução da URSS e do
PCUS, uma força viva e dinâmica. Era preciso contar com eles no pós-Iéltsin…
[1] «Yanks to the rescue. The secret
story of how American advisers helped win»(«A salvação pelos Yankees. A história secreta de como os
conselheiros norte-americanos ajudaram Iéltsin a ganhar»), Time, 15 de Julho de 1196.
[2] Esta
observação — formulada de um modo menos grosseiro, é certo, mas na mesma ordem
de ideias — faz lembrar um célebre dito de Franklin Roosevelt. Ao responder a
um crítico que o censurava pelo apoio dos Estados Unidos a Somoza, ditador da
Nicarágua, Roosevelt dissera: «Pois, eu bem sei que ele é um filho da puta (a
sono f a bitch), mas é n
osso».
[3] «Embracing
Mr. Wonderful — The West’s problems with Russian haven’t been resolved by
Yeltsin’s victory»( O abraço ao Sr. Maravilha – Os problemas do Ocidente com a Rússia
não foram resolvidos com a vitória de Iéltsin») Josef Joffe, Time, 15 de Julho
de 1996.
[4] O Fundo
Monetário Internacional concedeu-lhe, com a bênção do governo norte-americano,
um empréstimo de 10 mil milhões de dólares. Helmuth Kohl contribuiu, pela
Alemanha, com 2,8 mil milhões de dólares. E Alain Juppé entrou, pela França,
com mil milhões de dólares.
[5] Foi assim que
a imprensa e as televisões «revelaram» e deram ampla difusão a um pretenso
«programa secreto dos comunistas». Essa falsificação fora cozinhada no
objectivo de assustar os eleitores e desviá-los do voto em Ziuganov, candidato
do Partido Comunista. Nem o «grupo americano» nem mais quer que fosse se
confessou — está bem de ver— autor desse magnífico «golpe baixo».
[6] Fora isso que
Korjakov, conselheiro de Iéltsin, lhe sugerira.
[7] Estes são os
resultados da segunda volta (3 de Julho de 1996). Na primeira (16 de Junho de
1996), os cinco mais votados haviam sido: Boris Iéltsin, 35%; Ghennádi Ziuganov
(Partido Comunista da Federação da Rússia), 32,5%; Grigóri Iavlínski, 7,5%;
Vladimir Jirinosvki, 6% Aleksandr Lébed’, 5%.
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