Além!

Porque o silêncio é às vezes o caminho mais dificil, é preciso encontrar avenidas de tambores a rufar entre tantas mordaças, para construir a sempre inacabada e desejada felicidade, de viver sempre a juventude presente. Tempo de desejo é sempre tempo de Futuro.

30 de setembro de 2019

Assim se fabricam "vitórias"


Do livro o “Grande Salto Atrás”
De Henri Alleg

“ Aqueles que tão alegremente aplaudiram a morte da URRS e que tão perentoriamente proclamaram definitivamente virada a página do comunismo e das suas «utopias» não conseguiram, até hoje, descobrir nenhuma explicação para o fulgurante reaparecimento do pavoroso «espectro» de que julgavam libertos para sempre. A vitória dos comunistas nas eleições legislativas russas de Dezembro de 1996 deixou-os completamente perplexos; apenas conseguiram aperceber-se de que aquilo que haviam «enterrado» continuava, apesar de tudo, bem vivo.
Cerca de seis meses depois, a vitória de Iéltsin nas eleições presidenciais não chegou para dissipar-lhes a inquietação, pois sabiam quão frágil ela fora — e não somente por causa da saúde, mais que precária, do Presidente. Sabiam, também, que a maioria dos eleitores que na segunda volta se haviam finalmente decidido por ele não o tinham feito em sinal de aprovação pelo modo como governara durante o primeiro mandato e que muito menor era, ainda, o número dos que nele confiavam para o futuro. Quatro meses antes do escrutínio, as sondagens efectuadas por grupos de especialistas norte-americanos ([1]) atribuíram-lhe apenas 6% de votos favoráveis. A percentagem dos Russos que o achavam dotado «das competências exigidas para ser um bom presidente» era ainda menor. 60% dos Russos davam-no como corrupto e 65% responsabilizavam-no directamente pela derrocada da economia do país.
Mas era Iéltsin que servia ao Ocidente, pois, com ele, se tinha a certeza de a Rússia se manter no «bom caminho» e não sentir a tentação de voltar, depois de uma breve experiência capitalista, aos antigos espíritos malignos do colectivismo. «Iéltsin é o nosso homem, quanto mais não seja porque todas as outras soluções são muito piores» ([2]) — escrevia um dos editorialistas da revista Time logo a seguir ao escrutínio ([3]) «Se os dirigentes ocidentais pudessem votar nas eleições russas — acrescentava — , Iéltsin teria obtido, decerto, um resultado muito melhor que os 99,8% de Saddam Hussein.»
A aposta era demasiado forte para apenas lhe fossem dados estímulos verbais e calorosos desejos de vitória. «O Ocidente desembolsou milhares de milhões ([4]) para garantir a vitória de Iéltsin — escrevia, ainda, o mesmo editorialista — Os estadistas ocidentais convidaram-no a participar nas suas mais íntimas reuniões, adularam-no, amimaram-no, acarinharam-no…»
Bill Clinton, o cabecilha do «mundo livre», fez ainda melhor: prestou-lhe auxílio prático directo, mas — como revela a Time— no mais absoluto segredo, não fosse o candidato comunista ganhar alguma coisa com isso ao denunciar a ingerência norte-americana nos assuntos internos da Rússia e o papel de fantoche que Iéltsin se aprestava a desempenhar.
Em princípios de Março de 1996, chegaram tranquilamente a Moscovo cinco pacíficos cidadãos norte-americanos — que se faziam passar por homens de negócios — a fim de dar a sua ajuda na orientação da campanha eleitoral de Iéltsin. Por um «trabalho» de quatro meses, cada um deles receberia — além do reembolso de todas as suas despesas pessoais— a quantia de 250 mil dólares. Além disso, fora-lhes aberta uma linha de crédito ilimitado para a realização de todas as investigações, inquéritos e sondagens que julgassem necessárias.
Quatro desses homens eram especialistas em eleições, batidíssimos nos mais requintados métodos — e também nos «golpes baixos» — utilizados nos Estados Unidos para «vender» um candidato e conseguir a sua eleição à custa da esmagadora ocupação publicitária dos televisores, de minuciosos estudos da psicologia dos telespectadores (montando-lhes nos receptores dispositivos especiais destinados a «medir» a intensidade das suas reacções e a sua receptividade aos argumentos dos candidatos) e ainda, muito classicamente, de «luvas», ameaças e calúnias e de manifestos e declarações especialmente forjados e atribuídos ao adversário a fim de desacreditá-lo ([5])…
…Com a colaboração da filha de Bóris Iéltsin, Tatiana Diachenko, incumbida de manter uma constante ligação com o seu pai, esses norte-americanos definiram rapidamente a táctica que, segundo explicaram, seria a única capaz de garantir a vitória. As suas observações foram resumidas num memorando de dez páginas: «Os eleitores não aprovam a maneira com Iéltsin conduz os assuntos do Estado; não acham que, desse modo, as coisas possam melhorar e preferem a maneira de ver dos comunistas. Só há uma estratégia para ganhar, e é muito simples: em primeiro lugar, é preciso mostrar às pessoas que os comunistas têm de ser vencidos custe o que custar.»
«A dificuldade — explicaram depois esses mesmos agentes — é que Iéltsin não conseguia compreender que os Russos não queriam aceitá-lo.» Para ganhar— e para se não ver obrigado a anular as eleições por ser perigoso realizá-las ([6]) — , Iéltsin teria de convencê-los de que, apesar da repulsa que sentiam em votar nele, não podiam agir de outro modo. Isso exigia jogar com o medo: «Se os comunistas ganhassem, haveria guerra civil, desordem e matanças. Seria tudo muito mais terrível que a vida actual. Ou Iéltsin ou o caos e a sangueira. “Esta argumentação foi martelada e remartelada nas televisões e nas rádios, monopolizadas por Iéltsin (depois da primeira volta, Ziuganov foi praticamente impedido de ter-lhes acesso).
Milhões de eleitores, que o Presidente cessante convidava a votar nele, não tinham recebido os salários que o Estado estava a dever-lhes havia muitos meses. A brigada de «consultores» chegou à conclusão que Iéltsin devia absolutamente deixar de proclamar que lhes seriam pagos imediatamente a seguir à sua eleição, pois ninguém acreditava já nas promessas, que se viravam contra ele. Era preciso começar a pagar sem mais demora. Os milhares de milhões do FMI e das «democracias amigas» — aos quais se juntaram as reservas do Banco Central, ilegalmente confiscadas por Iéltsin — serviram, em parte, para isso. Os norte-americanos aconselharam-no, também, a atirar publicamente as culpas dessa falta de pagamento para os altos funcionários — que não teriam cumprido as suas ordens embora ele. Iéltsin, já de há muito lhes houvesse transmitido directivas no sentido de que todos recebessem o que lhes era devido.
 O fortíssimo apoio do Ocidente, as mentiras, a demagogia, o cultivo do medo e as calúnias anticomunistas, juntamente com o dinheiro distribuído às pazadas e com aas promessas de promoção feitas a certos candidatos, postos de fora de combate na primeira volta —  como o general Aleksandr Lébed’ — , para que desse apoio ao «bom» candidato, foram os ingredientes que, reunidos, acabaram por dar a vitória a Iéltsin. «Temos, enfim, a “democracia” na Rússia!» — exclamariam, sem rir, Bill Clinton, Jaques Chirac (que felicitou pessoalmente o seu «caro Bóris Nikoláevitch»), Helmut Kohl, John Major — e também outros políticos, com reputação de «esquerda», que preferiríamos não ver em semelhante companhia.
Iéltsin obteve 40 milhões de votos, ou seja: 53% do total dos votos expressos. Ziuganov obteve 30 milhões, numa percentagem de 40,3% ([7]). Para os falsos democratas, os autênticos mafiosos, os verdadeiros novos -ricos, os reformadores de meia-tijela, os autênticos mafiosos e os pretensos amigos que, no estrangeiro, tinham financiado a campanha, foi uma vitória. Mas, para os observadores das capitais ocidentais capazes de ir um pouco mais além na análise, o resultado do candidato vencido significava tanto, ou mesmo mais, que o do vencedor e mostrva que, no fundo, as eleições nada tinham resolvido.
Apesar da extraordinária mobilização dos meios contra eles reunidos, os comunistas tinham reconstruído, ao cabo de menos de cinco anos sobre a dissolução da URSS e do PCUS, uma força viva e dinâmica. Era preciso contar com eles no pós-Iéltsin…





[1] «Yanks to the rescue. The secret story of how American advisers helped win»(«A salvação pelos Yankees. A história secreta de como os conselheiros norte-americanos ajudaram Iéltsin a ganhar»), Time, 15 de Julho de 1196.
[2] Esta observação — formulada de um modo menos grosseiro, é certo, mas na mesma ordem de ideias — faz lembrar um célebre dito de Franklin Roosevelt. Ao responder a um crítico que o censurava pelo apoio dos Estados Unidos a Somoza, ditador da Nicarágua, Roosevelt dissera: «Pois, eu bem sei que ele é um filho da puta (a sono f a bitch), mas é n
osso».
[3] «Embracing Mr. Wonderful — The West’s problems with Russian haven’t been resolved by Yeltsin’s victory»( O abraço ao Sr. Maravilha – Os problemas do Ocidente com a Rússia não foram resolvidos com a vitória de Iéltsin») Josef Joffe, Time, 15 de Julho de 1996.
[4] O Fundo Monetário Internacional concedeu-lhe, com a bênção do governo norte-americano, um empréstimo de 10 mil milhões de dólares. Helmuth Kohl contribuiu, pela Alemanha, com 2,8 mil milhões de dólares. E Alain Juppé entrou, pela França, com mil milhões de dólares.
[5] Foi assim que a imprensa e as televisões «revelaram» e deram ampla difusão a um pretenso «programa secreto dos comunistas». Essa falsificação fora cozinhada no objectivo de assustar os eleitores e desviá-los do voto em Ziuganov, candidato do Partido Comunista. Nem o «grupo americano» nem mais quer que fosse se confessou — está bem de ver— autor desse magnífico «golpe baixo».
[6] Fora isso que Korjakov, conselheiro de Iéltsin, lhe sugerira.
[7] Estes são os resultados da segunda volta (3 de Julho de 1996). Na primeira (16 de Junho de 1996), os cinco mais votados haviam sido: Boris Iéltsin, 35%; Ghennádi Ziuganov (Partido Comunista da Federação da Rússia), 32,5%; Grigóri Iavlínski, 7,5%; Vladimir Jirinosvki, 6% Aleksandr Lébed’, 5%.

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