A questão do Homem Novo.
“As Revoluções ciam a atmosfera social que facilita aos que nelas participam desenvolverem as suas melhores potencialidades. Mas esse fenómeno, se assim o posso qualificar, é de curta duração.O espirito revolucionário dos que levam à vitória as Revoluções não é mecanicamente transmissível. O ser humano tem-se modificado muito pouco eticamente desde a Grécia ou a China antigas, berço de grandes civilizações da antiguidade.”pág. 59 A questão do homem novo em Portugal“”Ao alterar-se a relação de forças e o controlo do governo passar alternadamente pelo Partido Socialista e pelo Partido Social Democrata, o “comportamento revolucionário” de milhares de cidadãos que antes exigiam o Socialismo evoluiu rapidamente para uma acomodação à plena restauração do capitalismo. O Homem e mulher velhos reapareceram torrencialmente.”pag 61
“O homem novo somente se imporá de maneira extensiva e duradoura quando o capitalismo for erradicado do nosso planeta. Mas ao longo da História surgiram sempre homens novos, exemplares, E naturalmente, mulheres. Não as heroínas forjadas pelas classes dominantes, as santas e personagens como Joana d’Arc. Penso em mulheres novas que romperam todos os tabus da submissão feminina e desafiaram o futuro. Penso em revolucionárias como a polaca Rosa Luxemburgo, a russa Alexandra Kollontai, a cubana Célia Sanches, para citar apenas três exemplos.” Pag 62
Miguel Urbano RodriguesPerez esboçou um sorriso.“Todos nós, creio, nos cruzamos em momentos da vida com mulheres novas. A nossa conversa traz-me à memória uma, um ser maravilhoso, que conheci.”Ela nasceu em Mached, após o final da segunda guerra mundial, no Korassan iraniano, uma cidade que no século XIV ao XVII foi o polo da cultura do Islão asiático. Os pais eram militantes comunistas, militantes do Tudeh, um partido que foi alvo de grandes perseguições quando os ingleses e os americanos derrubaram Mossadegh e colocaram o Xá Rezha Pahlevi no trono. A única filha tinha cinco anos e um nome estranho, Damavenda, alusivo à montanha tutelar do país, cujo cume quase atinge os 6000 metros. Mas chamaram-lhe sempre apenas Vena. A menina somente falava o persa quando os pais iniciaram, como emigrantes, uma longa viagem que, após múltiplas etapas, findou no Chile, onde a família tinha parentes. Vena cresceu em Valparaíso, olhando o Pacífico da colina onde os pais mantinham uma pequena mercearia. Ignoro o que foi a sua adolescência. Quando a conheci ela teria uns 25 anos. Foi após um comício da Unidade Popular no ano 70, durante a campanha que terminou com a vitória de Salvador Allende sobre Jorge Alessandri, o candidato da direita. A sessão, no ginásio de um liceu de Santiago, era dedicada à juventude. Na assistência havia muitos momios – o nome usado então para designar os reacionários – porque o bairro, La Reina, era burguês, o que tornava a atmosfera escaldante. Naquelas semanas a polarização da sociedade chilena impressionava. Ninguém se posicionava como neutral. Vena falou pelo Partido Comunista, em nome de uma organização de professores. Lembro-me de que foi o único orador ouvido em silêncio. No final os jovens momios não a variam.“Porquê”A sua beleza impressionava. Tinha ns olhos enormes, meigos, o cabelo negro, descia-lhe até aos ombros e contrastava com a pele, muito branca.Mas não era a aparência física que fazia nela a diferença. Nem a voz que, pelo timbre, tinha ressonâncias musicais. Pensei que era chilena porque se expressava com o nosso sotaque, aliás num castelhano puro, mas utilizando uma linguagem muito simples. A sua intervenção dividiu-se em duas partes muito diferentes. Quase não se referiu à eleição. Inicialmente falou da vida numa callampa (designação da favela chilena) de Valparaíso e da gente que nela morava. Trouxe o quotidiano do bairro e os seus moradores para a sala, entrou na intimidade das famílias, evocou lutas dos seus antepassados num panorama de repressão quase ininterrupta através de sucessivos governos. A vida nessa callampa – sublinhou – era a imagem do sofrimento secular de milhões de chilenos. Numa brusca mudança de cenário, falou depois de uma visita que fizera às minas de carvão de Rota. Descreveu o seu encontro com os mineiros, a dureza das condições de existência naquela sucursal do inferno, evocou massacres num contexto de repressão brutal, para terminar transmitindo a esperança dos homens e mulheres de Rota, a sua confiança inabalável numa revolução que dignificasse nas minas a condição humana.A Unidade Popular, afirmou a terminar, simboliza a esperança do Chile oprimido. Parece banal o que ela disse. Mas foi pungente, comovedor. O estilo fazia a diferença. Abracei-a no final. Esse abraço foi o prólogo de outros encontros durante a campanha. Ouvia-a falar em comícios diferentes, Vena fascinava os auditórios porque conseguia condensar uma mensagem simultaneamente ideológica e humanista num discurso de assimilação fácil, directo, de frases breves, substantivo. Sem recorrer a citações, combatia, sempre serena, o nacionalismo patrioteiro, levando os trabalhadores e a juventude a descer pela história do Chile e a sentir-se parte dela. Trabalhara no Sul, com os mapuches, e aprendera a língua desses índios, descendentes dos antigos araucanos. Lutara ao lado deles pela defesa das suas terras invadidas por empresas madeireiras, com a cobertura do exército.Na época era professora de História da América Latina numa escola secundária pública. Eu também participava na campanha da UP e o interesse comum pela História e o facto de sermos ambos comunistas contribuíram para que amizade muito especial. Digo especial porque Vena, repito, era uma mulher diferente, excepcional em tudo. Tendo assumido o povo do Chile como seu, via nele a parcela da humanidade com a qual se identificava nas suas aspirações e lutas. Mas essa identificação apresentava-se como inseparável e consequência natural do sentimento internacionalista que conferia significado à sua existência. Não esquecera s raízes. Mantive com ela longas conversas sobre a história dos povos iranianos. Não tivera a oportunidade de voltar ao país onde nascera, mas percorria a caminhada pelo tempo desde os persas Aqueménidas, criadores de uma grande civilização de que se orgulhava. A cultura, o espírito militante, a modéstia, a ausência de secretismo, a sua disponibilidade para dialogar com adversários perturbavam-me. Um dia disse-lhe que ela demasiado perfeita e isso a desumanizava. Abriu os olhos com espanto. Não percebeu.Tentei explicar que via nela alguém que, qualquer que fosse a profissão ou actividade, subiria sempre ao cume da montanha. Estava vocacionada para fazer tudo bem. Era pontual, tinha uma intimidade rara com todo o tipo de máquinas, desde os eletrodomésticos aos camiões pesados, escrevia com estilo próprio, e disseram-me que era uma cozinheira de talento. Não gostou do que ouviu, quando a elogiei pela sua excepcionalidade. “Sou uma mulher igual a outras e não a avis rara que vês em mim” – protestou.Eu sabia que Vena tinha um companheiro. Mas somente o conheci durante o famoso lock- out dos camionistas, promovido pela direita. Era um economista que naquelas semanas em que o golpismo começou a desmascarar-se exercia funções importantes na CUT, a Central de Trabalhadores.Apenas troquei breves palavras com ele em duas ou três ocasiões.Vena esclareceu um dia que ele também era militante do Partido e que mantinham uma relação muito harmoniosa. Amava o companheiro. Gostaria de ter um filho, mas não imaginava quando seria possível. Não conheci alguém como ela tão desinteressada de bens materiais. Morava então num pequeno apartamento alugado perto da estação ferroviária. O bairro era pobre e feio. Não falava da sua vida familiar e a sua doçura habitual transmutava-se em dureza quando algum companheiro lhe dirigia um piropo. Reagia então com rispidez. Era uma jovem muito bela, como já disse. Adivinhava-se no movimento do seu corpo uma sensualidade forte, mas controlada, como se a sua revelação a incomodasse.”“Sou uma comunista biológica – dizia em tom de brincadeira. Bebi o comunismo no leite materno.”“no ano 73, quando a escassez de alimentos se agravou, todos, mesmo os quadros com responsabilidades no governo da Unidade Popular, recorríamos ao mercado negro. Ela não. Creio que chegou a passar fome.“É uma questão de princípios” – respondeu-me um dia ao recusar uma garrafa de óleo que lhe ofereci. Vena quando em reuniões sentia a necessidade de criticar algum camarada evitava sempre usar palavras que pudessem ferir. E nunca a ouvi participar de críticas a companheiros em rodas de amigos. Nas semanas que precederam o golpe, o debate ideológico no heterogéneo leque de forças progressistas que apoiavam o processo revolucionário atingiu uma intensidade que por vezes desembocava em atitudes agressivas, quando vinha à baila o tema da resposta popular a uma intentona militar. O precedente do tanquetazo de Souper, dominado com dificuldade, era inquietante. Vena nunca perdia a serenidade nessas discussões. Uma noite, em convívio realizado num bairro operário de Santiago, enfrentou com firmeza um dirigente do MIR que fazia a apologia dos cordones obreros, afirmando que o povo armado tinha condições para resistir vitoriosamente a um golpe militar. Vena foi convincente. Sem elevar o tom de voz, disse ao jovem mirista que a sementeira de ilusões naqueles dias era um serviço prestado à reacção. O general Prats enunciara uma evidência ao advertir que contra armas pesadas não haveria no Chile resistência popular possível. Atarefa dos revolucionários lúcidos era lutar pela inviabilização do golpe e não sonhar com a vitória no caso de choque com o exército.Na manhã de 11 de Setembro, quando a tragédia chilena principiou com o bombardeamento de La Moneda, eu encontrava-me no sul, na província de Temuco, em issão oficial. Horas depois, quando a Rádio informou que Allende estava morto e uma junta militar tomara o Poder, camaradas locais levaram-me até Culucatin, uma pequena cidade de região, e instalaram-me em casa de camponeses amigos onde permaneci durante dez dias. O Partido tinha ali muita influência e disseram-me que estava a ser preparada a minha saída para a Argentina juntamente com outros camaradas. No dia 20 – nunca esquecerei a data – soube que uma camarada acabava de chegar com outros companheiros para organizar a travessia da fronteira. Os puertos da Cordilheira estavam ali menos vigiados e não havia neve na época, no início da Primavera austral. Tentei muitas vezes recordar o que senti quando Vena entrou no quarto onde eu escrevia uma carta, inseguro de que ela seria entregue ao destinatário. Mas não consigo, tamanha foi confusão na cabeça entre sensações e pensamentos. Somente guardo na memória uma imagem daquele momento. Ela vestia umas calças pretas e uma boina também preta cobria-lhe a cabeleira. Permaneceu calada quando me abraçou longamente. Partiríamos de madrugada. À noite, após um jantar de todo o grupo, de que fazia pate um guia familiarizado com os caminhos da Cordilheira, Vena pareceu e falamos durante uma escassa hora. Ela consultava o relógio com frequência.Exibia a serenidade que nela era espontânea e permanente. Mas o que contou, depois de comentarmos a situação criada pelo golpe, não contribuiu para me levantar o moral. O golpe apanhou-a em Valparaíso, onde a repressão desencadeada pela Armada fora medonha. Não foi uma figura de retórica a famosa ameaça do almirante Toribio Merino, da Junta, de fazer de Santiago uma Jacarta se fosse necessário. Vena conseguiu chegar à capital e estabelecer logo o contacto com o Partido, que mergulhara imediatamente na clandestinidade. Do companheiro somente teve notícia três dias depois. Fora fuzilado com outros dirigentes sindicais. Como ela conhecia bem Temuco, incumbiram-na de organizar na região a travessia dos Andes de quadros que não haviam sido capturados na primeira vaga da repressão. Para isso estava ali. Dela, do seu sofrimento, não falou. Em resposta a uma pergunta informou que ficaria no Chile, integrada na Resistência. Não vou descrever o tormento que foi a viagem até à Argentina durante três dias, através de bosques quase impenetráveis e, depois, nas escarpas andinas, por pedregais nevoentos, gélidos. Mais de uma vez escapamos por um triz de patrulhas de exército. A minha admiração por Vena aumentou naquelas jornadas. Sofri duplamente porque descobri que a amava sem ter tomado consciência desse sentimento. Não creio que ela tenha percebido o que significava para mim. E eu não podia revelar-lhe a complexidade e a força da revolução interior que o nosso reencontro desencadeara. Já do outro lado da fronteira, em solo argentino, entregues a camaradas que nos conduziriam a Neuquen, a despedia foi breve. Ela ia regressar com o guia. Perguntei-lhe se tinha uma fotografia sua porque gostaria de ater comigo.“Como podes imaginar uma cosa dessas? – Respondeu. Não guardo fotos de ninguém, muito menos minhas.”“No último abraço, eu quis saber se ela pensava sair do Chile mais tarde, para lutar na Emigração com outros exilados. ““Não. O meu lugar é aqui.”Em Buenos Aires, primeiro, em Havana muitas vezes, quando encontrava camaradas chilenos, trazia o nome de Vena à conversa. Mas nunca mais tive notícias dela”O meu avião partiu antes daquele em que Perez viajava.Ao despedir-me, ele encerrou o nosso encontro com um comentário:“O homem novo será por muito tempo a excepção num mundo de homens velhos. Eu tive o privilégio de conhecer uma mulher nova. Se não amataram, Vema terá hoje 41 anos, E continuará a ser, estou absolutamente seguro, uma mulher maravilhosa, perfeita.”pag. 63 q 70Miguel Urbano Rodrigues em “A Metamorfose de Efigénia”
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