Apesar de tudo, vou dando por eles. Nas ruas, nos transportes colectivos, em lugares onde um ou outro acontecimento junta multidões. Vou dando por eles, os operários, nestes e noutros lugares, mas não na televisão. Aí, só mesmo quando mais uma empresa fabril encerra portas e, então, uma repórter desta ou daquela estação, quase sempre profissional que me parece de segunda escolha, surge de microfone em punho a recolher as razões dos trabalhadores e trabalhadoras despejados no saco aparentemente sem fundo do desemprego. É, pois, assim; e compreender-se-á talvez que eu deseje que seja também de outra maneira, isto é, que gente da classe operária não me surja no ecrã do televisor apenas em casos de despedimento. Mais: desejo até que alguns elementos dela apareçam, pelo menos de longe em longe, nas quase inúmeras estórias de ficção que, de tantas serem, dão para preencher grande parte das horas de vigília dos telespectadores e telespectadoras menos ocupados. Por isso estou agora a dedicar mais tempo ao visionamento das novelas com que a TV nos abarrota os olhos e o entendimento, na esperança de por lá lobrigar um sinal da classe operária. Sem êxito, talvez por pouca sorte minha, talvez porque os autores das novelas não gostem de operários ou, em hipótese alternativa, não queiram sequer recordar-se de que eles existem. Há-de ser também como consequência desta ausência, embora não apenas por ela, que muitas vezes se ouve dizer que «já não existe classe operária». Que se ouve dizer esta sentença sobretudo a quem convém fingir que acredita nela. Contudo, não apenas as estatísticas oficiais registam a permanência do operariado fabril como a existência de um sector industrial sobrevivente a décadas de destruição do tecido empresarial vem corroborá-la. Onde não existe classe operária é no que talvez possa ser designado por telenovelismo português, e aí, por consequência, foi erradicada até a sombra da luta de classes por falta de comparência de uma das partes. Há-de ter sido por isso que, em tempos não muito distantes, ouvimos o senhor primeiro-ministro dizer que isso da luta de classes é uma ideia completamente obsoleta, uma velharia sem préstimo. Provavelmente, o que acontece é que o senhor engenheiro anda a ver muitas telenovelas.
Amputações
Mas é sabido que em televisão qualquer ausência tem consequências: é mesmo um lugar-comum dizer-se que só verdadeiramente acontece, só tem existência real, o que «passa» na televisão, e que o que não surge nos televisores é como se não existisse. Sendo assim, é claro que os que dominam a TV alcançaram já um estrondoso êxito: eliminaram a classe operária. Vemos horas e horas de novelas, de muitos amores e desamores, de ciúmes e intrigas em quantidades industriais, mas tudo aquilo decorre entre gente fina, que não tem problemas de empregos nem de salários em atraso. É então que alguns de nós começam a suspeitar não ser por acaso que as estórias fornecidas têm um tão forte sabor a plástico, até a recear que nos façam mal à saúde. Para referir o que é talvez o exemplo mais flagrante, diremos que ao olharmos em volta verificamos que uma boa parte da jovem teleplateia dos famosos «Morangos» da TVI não sabe bem em que mundo vive: sabe de roupas giras, de sexo pronto a curtir, de como os cotas são impossíveis de gramar, mas dificilmente sabe mais qualquer coisa. Quanto à classe operária, talvez alguns dela tenham ouvido falar, um pouco como quem ouviu falar de antigos bichos maus e feios que o progresso pós-moderno eliminou. São, pois, criaturas mentalmente amputadas, incapazes de um dia virem a lidar eficazmente com a realidade, mas é certo que não têm culpa disso: foi a TV quem as quis assim. Em verdade se pode dizer que esta ficção televisiva é uma criadora de monstros, pois que retirou uma parte do cérebro daqueles que se lhe entregaram. Esta não é uma imagem agradável e bom será que esteja errada. Porém, continuo a olhar o ecrã do meu televisor e a notar que falta lá uma parte da vida, do mundo. Não é amputação que possa dar bom resultado.
original aqui
Sem comentários:
Enviar um comentário