Retirado do Blog Cravo de Abril
“- Olhe, houve ali um problema com o seu marido mas não esteja em cuidados, que ele é capaz de não vir esta noite mas é capaz de vir amanhã!”
Isso nunca aconteceu, pois, porque eu fui levado para Caxias e estive incomunicável três meses. Estive três meses incomunicável. Ao fim de três meses sou levado para a António Maria Cardoso, que era a sala da tortura – onde estavam os pides todos! – sou levado para lá e estive quatro dias e quatro noites. Davam-me uma cadeira, e depois tiraram-me a cadeira e já não tinha sítio para me sentar nem nada!, e então com a porrada nos interrogatórios eu já caía, sempre sem dizer nada! E então ao fim de quatro dias levaram-me para o Aljube. Meteram-me numa cela em que para conseguir dar dois passos tinha que fechar a cama! Aquilo tem um grampo e a parede tem uma coisa onde se prende e a gente fica com aquele bocadinho para andar! Salvo erro eu tenho a impressão que dormi cerca de dois dias! Batiam-me à porta para me dar qualquer coisa de comida mas eu praticamente não comia. Tinha falta de descanso, aquele moer da cabeça… um gajo esgota-se, não é? Depois, periodicamente era levado para a Maria Cardoso para interrogatórios! Levar porrada! Porrada num gajo!
“- Então, diz lá como é que era aquilo, há quanto tempo pertencias ao Partido?
- Eu nunca pertenci a partido nenhum!”
Tinha que dizer que nunca tinha tido ligações com o Partido! E eles não podiam provar nada! Mas eles diziam-me assim:
“- Mas então aquele sítio lá em Aljustrel, que chamam lá os Penedrões (é um sítio onde há umas pedras onde a malta reunia), a Cabeça do Homem, então vocês até iam para os Galhudos (os Galhudos é um sítio quando se vai ali para a Corte, ali naquilo que chamam a curvas da morte)…”
Eles conheciam coisas aqui!! Mas alguém devia ter falado, não era? Acontece que, depois, é claro, eles tentam-me fazer um processo, um processo negativo – porque eu nego sempre tudo! - e então o chefe Paulino, o chefe Paulino de Portimão, ele é que faz o processo … Então chama-me e disse-me assim:
“- Agora vou falar por ti ah, e se me interromperes levas com esta máquina nos cornos!” - uma máquina de escrever!
E veio um escrivão que estava lá, que era outro pide, claro…Estêvão Martins, era o nome dele, Estêvão Martins. Depois do chefe, depois de fazer o meu depoimento, começa a andar e a dizer assim:
“ – Eu, José Manuel Vieira Benedito, declaro que pertenço ao Partido Comunista Português…”
E mais não sei quê, não sei quê, não sei quê que ele estava para lá dizendo!
“ …Participou em diversas reuniões secretas, no sítio tal tal e tal, tentando agitar as massas para revoltas e mais …”
E mais não sei quê que ele estava para lá dizendo, que eu nunca disse nada, ele é que estava dizendo! Estava o escrivão lendo, que eu ouvi depois o escrivão a ler aquilo, não é? E disse.
“- Vê, teve de vir o chefe fazer isto por si, já viu?! Então não podia você ter dito, custava alguma coisa ter dito estas palavras?”
E eu disse assim:
“- Escute lá uma coisa: você deixe-me ler lá isso bem que eu não estou assim muito ciente do que é que se passou. Eu posso ler isso?” – que ele tinha-me dado a caneta para eu assinar.
E eu começo a ler, tal e tal, Partido, reuniões, agitação e tal - e eu peguei na caneta que ele tinha já posto ao pé de mim e disse:
“- Eu não assino!
- Então não assina porquê?
- Porque não assino! Porque se eu assinar isto para aqui, que eu não fiz, vocês não me vão dar seis meses de prisão! Vão dar-me três anos, que é para levar as medidas de segurança e eu nunca mais saio daqui. Eu não assino!”
E não assinei! Não assinei… eh pá o gajo vai dizer ao chefe! O gajo entra ali… parece que vi o homem deitar lume pelos olhos! Agarra-se a mim, joga-se a mim e aperta-me a garganta que eu até me deixei cair, já não respirava! E o gajo dá-me uma joelhada… e dizia assim:
“- Cabrão! Bandido! Assassino! Gatuno!” – chamava-me tudo, tudo do pior – “Então fizeste aquilo, eu estive a perder o tempo, fizeste aquilo tudo – que eu sei que fizeste - e agora não queres assinar?”
Digo:
“- Eu não quero assinar nada, eu não posso assinar aquilo. Então eu não fiz isso! Não tenho nada com o Partido Comunista! Apenas eu dizia que ganhava pouco, que tinha fome. Era a única coisa que eu dizia!”
E então pronto, os gajos deixaram-me. Mas ainda fiquei lá nessa noite a dormir! Depois veio um pide dar-me uma bofetada… diz-me o gajo:
“- Então ainda te venho aturar aqui esta noite??? Ahhh… esta noite se não falares aqui em condições, ao pormenor, levas aqui uma remessa que não sais daqui vivo!”
Eu estou sentado numa cadeira, mas estou encostado à parede! O gajo começa a fazer-me perguntas. E eu nada! E depois o gajo começa a andar assim com a mão (balançando de um lado ao outro, em gesto largo):
“- Estás aqui estás a levar!”
E à medida que a mão ia passando eu ia-me desviando, não é? Mas há uma altura em que eu tenho só a parede, não me posso desviar mais, o gajo apanha-me de mão cheia e derruba-me! Ora, eu estou caído no chão, não me quero levantar! Porque eu tenho medo de levar mais! E eu disse assim só, para ele:
“- Escute: você está fazendo-me aqui uma coisa que eu não era capaz de fazer ao meu maior inimigo! Então eu sou doente, eu estou doente, já! Então não vê como eu estou?” - Eu estava doente, evidentemente, eu estava doente! – “e você está a bater-me?”
O gajo virou-se para um que estava na porta e disse:
“- Anda cá aqui pá, anda cá aqui. Este gajo que está aqui caído esta a dizer-me que se estivesse de pé que eu não lhe conseguia bater!”
Eu alguma vez disse isso???!!! Provocando, sabes?
“- Então levanta-te lá para ver se eu não sou capaz!”
Ah, «levanta-te lá para ver se eu não sou capaz»! Ora eu sei que não posso resistir à violência deles! Eles estão ali quatro, cinco, seis! E o gajo vem ali pá, dá-me uns pontapés e eu tive de me levantar! E outro gajo vem ali e diz:
“- Eh pá, não não, deixa lá o gajo…”
E deixou-me. Bom, quando veio a noite, era para aí umas oito horas da noite, vejo um gajo chegar lá e diz:
“- Vá, prepare-se que é para ir para a prisão.”
Pegaram numa carrinha e levaram-me para lá. Bom, aquilo andou ali uns três meses a irem buscar-me, levar-me; buscar-me, levar-me; estive aquelas quarenta e oito horas, a primeira vez estive aquelas quarenta e oito horas lá, sem me deixarem sentar, sem me deixarem dormir! Nada! Chama-se a tortura do sono, em que a gente está a ver o chão… o chão está nível, mas para mim já não está tão nível! A partir da segunda noite, entrando na terceira noite, em que o chão já me dava a impressão que aqui o solo estava assim (muito inclinado), com a peso que eu tinha nas pernas, que eu custava já a poder com as pernas! Que era muito tempo de pé, e inchavam-me as pernas… E eu via bichos! Os nós da madeira, esses nós que a madeira às vezes tem, essas coisas negras, eu via aquilo mexer tudo! Aquelas visões que a gente tem! Maneiras que, pronto, havia ali uma coisa, nas leis que eles tinham nessa altura: a gente sem julgamento não pode ficar preso mais que seis meses! Ou vai responder, ou se é absolvido ou, se não for responder, ao fim dos 180 dias tem de ser posto na rua. Como não arranjaram motivos para que me mandassem para tribunal, e para me manterem mais tempo, ao fim dos 180 dias, ao fim dos seis meses, os gajos levaram-me lá … lá estiveram a escrever, a escrever, a escrever…
“-Vá, pode-se ir embora!”
Mas eu tinha ouvido falar tantas coisas, que às vezes punham as pessoas em liberdade para as matar! «Vá-se embora» mas que depois lhes davam um tiro e diziam que um gajo se tinha virado a eles ou qualquer coisa! Porque há um caso, na António Maria Cardoso, em que há um preso que é atirado lá de cima cá para baixo! Eles… há pessoas que viram o homem estar agarrado ao parapeito da janela para não cair e eles estarem a pisarem-lhe as mãos e ele cair depois cá para baixo! E morreu! E nessa altura, quem está? O embaixador do Brasil, que era o Álvaro Lins. Da Embaixada Brasileira, esse homem viu essa cena! Viu essa cena e até se criou uma polémica com esse embaixador, porque acho que esse embaixador depois participou… ele até foi mudado daqui para o Brasil. Bem, eu depois saio da prisão, saio da prisão ao fim dos 180 dias, moro na Amadora, na altura. Sem saber o que se passava em minha casa. Como estaria a minha mulher ou a minha filha. E eu vinha de uma maneira que até a minha filha estava falando com uma mulher na rua e eu passo…
(silêncio)
E eu passo e a miúda diz assim:
“- Então este é o meu pai!”
(silêncio, choro profundo)
Desculpa camarada.
Ant.Galamba – Não tens nada de pedir desculpa camarada. Se quiseres parar um bocadinho… tomar fôlego. Ou parar isto de vez…tu é que sabes. A gente está entre amigos, acima de tudo! . . .
(silêncio e lágrimas, de ambos)
José Vieira – Isto há-de passar! Não posso recordar estas coisas, isto choca-me…
Ant. Galamba - É isso que eu estou a dizer camarada. Se quiseres parar…
José Vieira – Pois… mas para contar as coisas tenho de me lembrar… não aguento isto! isto é uma coisa que eu queria esquecer! Depois falando nisto… depois fico sem trabalho, sem nada. Chego lá à oficina para começar a trabalhar, está lá a ordem para não me deixar entrar!
“- Mas este é que é o meu pai!”
(choro convulso)
A miúda não me conhecia! Fiquei sem emprego. Mas o Partido ajudou-me. A malta do partido pá… ia sempre uma cartinha lá para casa e davam sempre qualquer coisa. Já depois de eu estar preso, antes…. Quando eu estava na prisão já iam para lá umas cartas. E diziam à minha mulher: «quando for visitar o seu marido nunca diga que recebeu dinheiro.» Porque eles podiam assim prender as pessoas que… Até o jornal A República , também houve uma campanha que…
(lágrimas)
… que…
Eu passei muitos problemas depois de sair da prisão. Já não dormia, não conseguia dormir. Estava sempre com medo dos gajos…
(silêncio)
Veja original aqui